domingo, 4 de junho de 2017

Solidão. Solidão?

Solidão é um estado de alma.

É o estado de quem se sente só ou desacompanhado. É a busca da companhia fora, quando não a encontra dentro.
Estamos vivendo tempos de solidão, ainda que tenhamos acesso a milhares de seguidores, cliques, compartilhamentos, amizades, redes sociais Snapchat, Insta, Face. Amizades de baladas, de bebidas e vozes altas que, muitas e muitas vezes, nada escutam, nada dizem e o máximo que deixam é uma ressaca.

Uma quantidade infinita de posts explicando depressão, tristeza, dor sugerindo que não julguemos o que desconhecemos. Flores e gatos ilustram como se deve viver. Flores e gatos são efêmeros, assim como nós. Como se a partir de cada postagem, uma solução mágica surgisse ou alguma compreensão, acolhimento, escuta. Mas, quem realmente ouve? E, o quanto é possível "ouvir" alguém vendo essas imagens de gatinhos fofos mascarando a dor?

Abro uma página na internet e me deparo com un convite.  O convite para que eu crie a minha alma gêmea e a transforme num papel de parede para o computador.

Deve ser assim que funciona:
Acordo, tomo café, banho, me arrumo. Ligo o computador para trabalhar, estudar, ouvir música, mas antes, vejo estática, sem vida e criada por aplicativos e para mim, a minha alma gêmea. Ela, perene, eu, efêmera. Ela, oferecendo companhia, consolo, futuro. Eu, só, desolada, sem perspectivas.
Depois que eu me for, essa imagem estará armazenada em alguma nuvem, estará marcada por alguma hashtag, algo como #almagêmeadasyl e, anos depois que a efêmera Syl tenha virado pó, alguém poderá encontrá-la. Mas não encontrará a mim... que bom!

Que bom que eu seja efêmera, passageira, como água fluida, como vento da manhã, como qualquer imagem poética lugar comum e que, com esforço e resignação, consiga carregar minhas passagens, histórias e momentos junto à única companhia que tenho e que realmente importa: a minha passageira, findável, frágil e tão minha alma.

É ela que no final do dia me faz companhia. É ela que ao final de cada dor, sai marcada por cicatrizes. É ela que me traz lições após cada erro. É ela que quando tudo desmorona ao redor é capaz de trazer a força do renascimento. É ela que fica, quando eu me for. É ela que tem a capacidade de transformar seu estado, a partir de escolhas minhas. Ela é a minha mais fiel parceira, alimentada por mim e minhas escolhas.

É a soma da imaterialidade da alma e a corporalidade visível da Syl, que fazem possível a construção dessa história de sucessos e fracassos. Essa é a combinação que cria uma trama permeada de risos e choros, sucessos e fracassos, forças e fraquezas, humildade e prepotência.
É um cair e levantar-se constantes.

Se a desconfiança é que alimenta o estado da alma para a solidão, alimentemos a confiança através das relações, dos encontros, das rodas de conversa, da troca, do compartilhamento ao vivo.
Estes são aplicativos seculares, não há restrição médica, não necessitam do "Facelift" para que eu ou você saiamos bem na foto.

É uma escolha. O tipo de alimento estamos dando à nossa alma é o que nutre o estado no qual ela se encontra agora.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Caixa de costura

Há uns dias fui procurar no armário da minha mãe agulhas de crochê e linhas. Eu tinha certeza que, mesmo sem presenciar há muitos anos as habilidades manuais dela, essas coisinhas estariam lá.

Nem pedi permissão, pois ela está viajando. Fui xeretar no armário especialmente desenhado para acomodar sua máquina de costura. Nas laterais, gavetas, gavetinhas, gavetonas, primorosamente organizadas com caixas, caixinhas, caixonas de linhas, agulhas, carretéis, zíperes, botões, passamanarias, dedais, fitas e fitilhos.

No início deste ano, cismei que voltaria a bordar, tricotar, fazer algum trabalho manual.
Quando pequenas, eu e minha irmã usávamos roupas costuradas por mamãe (nunca me referi a ela assim!), diziam todos que éramos uns primores, de tão bem arrumadinhas que nos vestíamos.

Lembro da fantasia de fadinha, uma azul e a outra rosa, feitas para mim e Anna. Enquanto escrevo, quase sinto o tule usado na saia e no chapéu, em formato de cone, feito de isopor revestido de tecido, salpicado de estrelinhas douradas. Um véu de tule caía pelas costas, tudo isso para escorregarmos pelo chão do Clube Pinheiros, catando confete pra jogar nos outros. A memória é tão vívida que sinto estar vestida com ele, só fico em dúvida se estou de azul ou rosa. Um vestido, verde e que aparece em algumas fotos de infância, tinha uma detestável gravatinha. Como eu ficava brava por dentro, só por causa da gravata. As flores minúsculas da estampa, o corte e o comprimento do vestidinho me agradavam, mas a gravatinha, fininha, um laçarote caído, costurado no meio das golas, era um horror pra mim. Vendo as fotos, já não acho mais a mesma coisa, a chata era eu mesma. Na época dos sapatos de plataforma de borracha branca, ganhamos pantalonas lindas, bem anos 70. Karin costurava, fazia nossos cabelos, utilizando bobs e laquê em profusão, preparava as lasanhas dominicais para familiares e amigos, fumava e trabalhava muito. Sempre foi uma excelente vendedora, comerciante. Estava à frente de seu tempo, seja na moda, seja na ousadia. Ariana, quem entende, sabe do que falo. Nem sempre consegui compreende-la. Nossos arranca-rabos eram homéricos, do tipo "sai-de-baixo". Filha escorpiniana, quem entende, sabe do que falo.

Tudo isso, e um pouco mais, saiu de dentro da caixinha de costura que ilustra este texto. Ela tem praticamente a minha idade, acompanhou todas essas histórias e hoje, como fiel guardiã do tempo e das memórias, resolveu, sem que eu pedisse, trazer todas essas lembranças exatamente agora, quando comemoramos os 80 anos de vida da Karin.

Mãe, obrigada por tantas lembranças, vivências, apoios, experiências e vida.

E, obrigada por guardar a caixinha de costura e as agulhas de crochê. Mais uma vez, você vai me ajudar a ajudar. Te amo!

quinta-feira, 2 de março de 2017

Dilermando de Demétria

Assim que cheguei fui informada que "esse é mais um que deixaram aí".
A carnavalesca que habita em mim, viu-se forçada a dar espaço a uma outra persona que pediu passagem, como abre-alas de escola de samba. A introspectiva.
Um trabalho de conclusão de curso, iniciado em 2013, precisava ser encerrado. Carregar coisas, pessoas, sentimentos, afazeres incompletos, pesa demais.
Damos um passo pra frente, mas aquilo, aquele, o que seja que está incompleto na vida, coloca suas garras invisíveis em nossas costas e caminhamos mais lentamente do que poderíamos. Ou, até estagnamos.
Demétria, um bairro em Botucatu, foi o local escolhido. Cuidado com o que você deseja, pode conseguir. Já ouviu isso alguma vez?
Sou testemunha viva de que é verdade.
Eu buscava um lugar quieto e tranquilo, onde pudesse ler os livros que precisava e trabalhar na monografia da personagem que escolhi em 2013. Clarice Lispector.
O Universo conspira a favor, pois em uma construção de dois andares, aproximadamente catorze quartos, rodeado de verde, galinhas, seriemas e vacas, eu fui a única habitante humana por seis dias.
Quando morava em Nápoles, Clarice levou para casa um cão que "apesar de ser italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando". Foi seu companheiro fidelíssimo nos primeiros meses de sua vida de expatriada. 
Ela considerava o cão a "pessoa mais pura de Nápoles" e em uma de suas crônicas sobre bichos, pelos quais era apaixonada, escreve que "nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão."
Dilermando foi deixado para trás. A escritora e seu marido foram transferidos para Genebra e o cão estava doente. A dor de Clarice foi muito grande.
É com essa história na cabeça que sou encontrada por esse cão magrelo, amarelado e com olhos de pedinte, na primeira caminhada que faço até o mercado mais próximo. Ele tem cara de Dilermando!
Se fui amada por Dilermando de Demétria, não sei, mas que ele foi um companheirão, foi.
Ele já havia se aproximando quando retomei a leitura de uma das biografias de Clarice, escrita por Nádia Battella Gotlib. Na verdade, primeiro se aproximaram as galinhas, depois o cão.
Durante esses dias, ele estava sempre por perto. Eu não precisava me preocupar com a comida, mesmo sem ter sido adotado formalmente por alguém, uma das casas ao redor se encarrega de alimentá-lo.
Na primeira noite, um susto enorme. Saio do quarto para ir até o banheiro e, pimba!, lá está ele, enrolado no alto da escada, ao lado do meu quarto. Pulamos os dois! Eu, para dentro do quarto, coração na boca; ele, escada abaixo, coração na boca também!
Descobri, quando já estava para ir embora, que ele abre a porta da frente, se aboleta em algum dos quartos e dorme. Que ele dormia em algum quarto, descobri no dia em que ele se instalou na minha cama. Gostaria de uma explicação convincente para compreender como um cão tão mirrado, magrelo e leve, consegue ficar com peso de chumbo quando tentamos tirá-lo da cama. Se ele ainda estivesse na ponta do colchão, vá lá, mas estava no meu travesseiro... Desculpe, Dilermando de Demétria, vá para outro lugar.
Concluí a monografia, tirei das costas um peso e abro caminho para outras realizações. Vim de ônibus para Botucatu, meu carro quebrou antes da viagem e, como obstáculos surgem para que a gente os supere, viajei assim mesmo.
Isso significa que não tenho como levar Dilermando de Demétria.
Ele vai ficar pra trás.
A dor está sendo grande, mais uma que aprenderei a superar - é assim com todos nós, não é?
Quanto à ele, tem um espaço esplendoroso para correr, galinhas com as quais brincar, humanos que sempre o rodeiam e dão carinho.
Quem sabe, surge uma Clarice e o resgata?
Dilermando da Demétria
foto: Sylvia Beatrix

domingo, 5 de junho de 2016

Único

Algumas coisas na vida acontecem uma vez só.
A troca dos dentes de leite pelos definitivos.
A perda da virgindade.
Calvície.
Outras coisas podem acontecer mais de uma vez, mas carregam consigo características que a fazem únicas.
Os encontros, por exemplo.
Podemos enumerar diferentes tipos encontros: amorosos, sociais, comerciais, ao acaso; mas mesmo dentro dessas categorias, conseguimos reconhecer aquele que é do tipo "once in a lifetime". Unique.
Um encontro que você "sabe" que não acontecerá de novo.
Oito pessoas ao redor da mesma mesa. Comida e bebida. E, da maneira como está acontecendo agora, você sabe que não vai se repetir.
Duas das pessoas presentes estão indo para outro canto do mundo. Outras três você só conheceu por causa das que estão indo embora. Restam três, com algum envolvimento anterior.
Descrevendo dessa maneira, parece com tantos outros encontros que você já vivenciou, talvez seja mais um... mas não é.
A diferença é que você sai diferente da forma como entrou. Alguma coisa, mesmo que pequenina, se alterou. Uma pergunta ficou em sua cabeça, uma nova ideia, a risada solta em uma piada nova, a lembrança que vai guardar "daquele" momento específico, ou, simples e deliciosamente, as pessoas que estavam ao redor daquela mesa.
Às vezes, participamos de encontros frequentes com as mesmas pessoas. São divertidos, calorosos, mas são apenas "mais um encontro com as mesmas pessoas".
As mesmas piadas.
Os mesmos rostos.
As mesmas ideias.
Mais do mesmo.
É bom, é confortável, é seguro. Delicioso, por isso se repete. Mas não é único.
E tem aqueles encontros que acontecem uma vez só, ficam pra sempre e nem precisamos fotografar.
O registro está na alma.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Silêncio em silêncio

Ela prepara uma xícara de chá, acrescenta duas gotas de adoçante, alcança a colherinha e mexe, mexe, mexe, mexe, mexe, olhando nada, nada, nada, nada, nada. Naquele espaço só existe lugar para o som da colherinha batendo na xícara. Dá um gole no chá, está frio, faz careta e joga o restante na pia.
Caminha sem saber se vai ao banheiro fazer xixi, ou se segura mais um pouco. Segura. Daqui a pouco eu vou, logo passa a vontade. Na sala, escolhe sentar na poltrona que nunca recebe sol. Seus olhos se fixam nos fios puxados das almofadas, preciso comprar um arranhador pra essa gata. Segura entre os dedos um dos fios soltos, que não oferece resistência e vai se alongando, alongando, alongando, alongando, alongando, até ser preciso fazer uma bolinha, enrolar o fio nele mesmo, numa cadência hipnótica e rítmica entre o movimento de sua mão e o fio que sai do tecido e o buraco que surge na almofada. Sem fim, isso não tem fim.
Corta o fio, deixa cair a bolinha no chão, a gata pula para brincar com aquele esboço de novelo, ela cutuca o buraco recém criado. Cabe meu dedo, cutuca um pouco mais, sente-se segura, puxa com força e faz um rasgo. E outro. E outro. E outro.
Tiras largas de tecido saem de suas mãos, misturadas com espuma, já é possível entrever a madeira da estrutura. A madeira da estrutura. A gata passa por entre as suas pernas, perdeu o interesse na bolinha. E ela, perdeu o interesse.

foto: imagem da internet


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Uma historinha de amor

Hipotética saiu de Townsville e foi morar em São Luis do Maranhão. Fotógrafa, casada com Engenheiro, sem filhos.
Naquele ano choveu tudo o que nunca havia chovido em São Luis. O céu era cinza constante, as ruas encharcadas como bolo úmido, assim como os sapatos, as roupas e a alma de Hipotética. Desnecessário torcer peças para que ficassem um pouco secas ou colocar na secadora. Molhavam de novo. Pesados, encharcados, desconfortávies, barulhentos... tchóff... tchóff... tchóff... eram os sons que ela ouvia dia após dia.
Tinham dito a ela que o Brasil era ensolarado, com dias lindos, quentes e praias maravilhosas. Céu azul, imagens de cartão postal, excelente para fotógrafos. Paisagens paradisíacas. Naquele ano, não. Chuva. Torrencial. Nordeste brasileiro chuvoso. Tchóff... tchóff... tchóff... eram os sons que ela ouvia quando voltava do supermercado. Quando dava uma volta no quarteirão. Quando ia até a padaria. Quando clicava uma foto. Só chuva.
Português, não falava. Recebeu a sugestão de evitar sair de seu apartamento com a máquina fotográfica, corria o risco de ser roubada se fizesse isso. Perderia sua ferramenta de trabalho. Diminuiu as saídas.
Hipotética fotografou incansavelmente a mesma imagem, o mar visto da janela de seu apartamento. Com chuva.
Engenheiro trabalhava. Muito.Viajava, deixava Hipotética em casa com um beijo na testa e um volto logo. Viajava. Hipotética, se encharcava. E clicava o mar visto da janela de seu apartamento.
Demorou um ano para Hipotética voltar à Townsville, sem Engenheiro.
Chorou muito, comprou um dachshund, voltou a clicar imagens mais secas em sua cidade natal.
Brasil, São Luis do Maranhão e a chuva, ficaram para trás. Assim como seu casamento.
Encontrou uma parceira de clique, abriu uma empresa, fotografavam casamentos, nascimentos, amor. A parceria profissional entre Hipotética e Madura cresceu.
Madura já havia sido casada, dois filhos adultos, cabelos brancos bem cortados e elegantes. Um sorriso lindo, com pequenas rugas ao redor dos lábios que revelam dores secretas. Mesmo quando ela sorri para Hipotética - que sorri de volta, sem ainda ter rugas ao redor dos lábios, mas já com dores secretas.
A parceria emocional, nasceu.
Descobriram-se.
Madura mudou-se para Perth. Hipotética ficou, até agora.
Hipotética acaba de anunciar nas redes sociais que está indo morar com seu amor.
E levou o dachshund.




sábado, 30 de maio de 2015

Rue Tolosane

Final da tarde, três velhinhos, dois homens e uma mulher, sentados num banco em Verfeil.

Nosso almoço tinha sido uma experiência do outro mundo.
Thomas Nicolas desistiu do violoncelo e foi afinar paladares. Tocou por muitos anos, participou de diferentes competições e, em algum momento, disse ele, simplesmente não parecia certo. Algo místico. De misticismo entendemos, disse a ele sobre os brasileiros. Foi um chamado, uma mudança que não conseguia explicar racionalmente. Deixa a razão pra lá, compreendemos muito bem o conceito de chamados místicos.

O cardápio que ele ofereceu naquele sábado seguiu o caminho do inexplicável. Pequenas porções de grandes sabores, com produtos locais e beterraba preparada de uma forma que deixaria minha mãe orgulhosa de mim, pois comi tudo. 

Quatro pessoas se dedicam aos vinte e cinco lugares oferecidos pelo restaurante, número suficiente para termos um bom controle do atendimento, da cozinha e da divisão de lucros, contou Sebastién, responsável pelo salão, anotando os pedidos, sugerindo vinhos e esbanjando simpatia. Coraçõezinhos para ele em atendimento!
Fotos, claro! Mania brazuca, acentuada pela minha particular dificuldade de memorizar só os fatos. Assim sendo, clico Thomas, Sebastién, os pratos, dois cães que parecem de pelúcia de tão comportados que estão, a pequena de sete anos que acompanha seus pais, a esposa do chef e o banheiro. Pode rir. Fotografei o banheiro por causa da minha cunhada arquiteta, mas isso é assunto para outra crônica.
Uma bolota laranja-cítrico-físico-química trazida em uma moderna colher retorcida, acompanha o café e a conta. Chega. Parece que não há mais espaço para experiências sensoriais. Engano. O melhor viria depois da conta paga.

O vilarejo é lindo, parece que a Amelie Poulain vai aparecer a qualquer instante.
Uma caminhada depois do almoço, antes de pegar a estrada e tirar mais algumas fotos de flores, janelas, casas, do preguiçoso e lindo gato e dos velhinhos. Fico disfarçando, não quero ser invasiva, isso não combina com o lugar.
A senhora é a mais animada, fala, gesticula e sorri para os dois companheiros de banco. Passo por eles e, estupidamente, pergunto em francês se falam português. Sei lá, deu a louca.

Conchita devolve rápido, português não, mas falo espanhol, soy de Valencia. Era o enrosco que ambas precisávamos, e meu clique estava garantido. Um dos senhores fala qualquer coisa, se levanta e vai embora. Interrompi algo, mas Conchita e Jorge não se incomodam.

O pai dela deixou a Espanha na época da guerra e quando ela completou quinze anos, veio para Verfeil juntar-se a ele e aqui ficou. Casou-se com Jorge, tiveram três filhas, Sylvie, Isabel e Patricia; os seis netos e três bisnetos. Gabriel, o mais novo, tem oito dias.

Sua casa foi também seu trabalho, ali mesmo na entrada, onde hoje é a sala, comercializava miudezas. Agora não mais, já estão aposentados e ela precisa - e quer - cuidar do marido. Conchita mostra os vasos em que havia plantado, no dia anterior, algumas flores, y ya sacaran casi todo, diz ela rindo.  Pergunto sobre uma das plantas, recebo a explicação de que serve para aliviar dores, curar feridas e, pronto!, sapatos tirados, ela pega algumas folhas e faz uma compressa no meu calcanhar para tratar das bolhas. E nos convida para entrar, pois Jorge quer nos oferecer um café.

Cheiro de família, carinho e memórias dentro do lar. Conchita mostra uma cristaleira, mi papá hizo, acaricia orgulhosa a peça. Ele havia sido construtor e um dia disseram que ele não poderia mais construir casas. El empezó a hacer muebles. Nossos maridos engatam numa conversa de muitas risadas e quase nada de compreensão. O simpático velhinho aos noventa anos, já não fala muito bem, anda com dificuldade e a todo instante nos pergunta ¿café?; ¿vamos tomar un café?

O tempo flui, vejo o album de família, escuto as histórias, quem se separou, quem é filho de quem, onde trabalham filhos e netos, é o reencontro com uma velha amiga desconhecida. 

Precisamos ir, a estrada nos aguarda. Jorge reclama que o café não veio, entra Gloria, uma vizinha, nossa anfitriã explica numa mistura de espanhol com francês quem são os invasores brasileiros. Precisamos ir. Conchita me segura pelo braço, pede para eu esperar, folheia seu álbum de fotos, arranca uma e diz recuerdo. Peço a ela o endereço de sua casa, quero enviar uma foto da minha família. Toda atrapalhada ela diz que não consegue escrever e pede para Gloria que anote num papel o nome da rua.
Rue Tolosane, última casa à direita de quem sobe. Em frente ao banco.