quinta-feira, 2 de março de 2017

Dilermando de Demétria

Assim que cheguei fui informada que "esse é mais um que deixaram aí".
A carnavalesca que habita em mim, viu-se forçada a dar espaço a uma outra persona que pediu passagem, como abre-alas de escola de samba. A introspectiva.
Um trabalho de conclusão de curso, iniciado em 2013, precisava ser encerrado. Carregar coisas, pessoas, sentimentos, afazeres incompletos, pesa demais.
Damos um passo pra frente, mas aquilo, aquele, o que seja que está incompleto na vida, coloca suas garras invisíveis em nossas costas e caminhamos mais lentamente do que poderíamos. Ou, até estagnamos.
Demétria, um bairro em Botucatu, foi o local escolhido. Cuidado com o que você deseja, pode conseguir. Já ouviu isso alguma vez?
Sou testemunha viva de que é verdade.
Eu buscava um lugar quieto e tranquilo, onde pudesse ler os livros que precisava e trabalhar na monografia da personagem que escolhi em 2013. Clarice Lispector.
O Universo conspira a favor, pois em uma construção de dois andares, aproximadamente catorze quartos, rodeado de verde, galinhas, seriemas e vacas, eu fui a única habitante humana por seis dias.
Quando morava em Nápoles, Clarice levou para casa um cão que "apesar de ser italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando". Foi seu companheiro fidelíssimo nos primeiros meses de sua vida de expatriada. 
Ela considerava o cão a "pessoa mais pura de Nápoles" e em uma de suas crônicas sobre bichos, pelos quais era apaixonada, escreve que "nenhum ser humano me deu jamais a sensação de ser tão totalmente amada como fui amada sem restrições por esse cão."
Dilermando foi deixado para trás. A escritora e seu marido foram transferidos para Genebra e o cão estava doente. A dor de Clarice foi muito grande.
É com essa história na cabeça que sou encontrada por esse cão magrelo, amarelado e com olhos de pedinte, na primeira caminhada que faço até o mercado mais próximo. Ele tem cara de Dilermando!
Se fui amada por Dilermando de Demétria, não sei, mas que ele foi um companheirão, foi.
Ele já havia se aproximando quando retomei a leitura de uma das biografias de Clarice, escrita por Nádia Battella Gotlib. Na verdade, primeiro se aproximaram as galinhas, depois o cão.
Durante esses dias, ele estava sempre por perto. Eu não precisava me preocupar com a comida, mesmo sem ter sido adotado formalmente por alguém, uma das casas ao redor se encarrega de alimentá-lo.
Na primeira noite, um susto enorme. Saio do quarto para ir até o banheiro e, pimba!, lá está ele, enrolado no alto da escada, ao lado do meu quarto. Pulamos os dois! Eu, para dentro do quarto, coração na boca; ele, escada abaixo, coração na boca também!
Descobri, quando já estava para ir embora, que ele abre a porta da frente, se aboleta em algum dos quartos e dorme. Que ele dormia em algum quarto, descobri no dia em que ele se instalou na minha cama. Gostaria de uma explicação convincente para compreender como um cão tão mirrado, magrelo e leve, consegue ficar com peso de chumbo quando tentamos tirá-lo da cama. Se ele ainda estivesse na ponta do colchão, vá lá, mas estava no meu travesseiro... Desculpe, Dilermando de Demétria, vá para outro lugar.
Concluí a monografia, tirei das costas um peso e abro caminho para outras realizações. Vim de ônibus para Botucatu, meu carro quebrou antes da viagem e, como obstáculos surgem para que a gente os supere, viajei assim mesmo.
Isso significa que não tenho como levar Dilermando de Demétria.
Ele vai ficar pra trás.
A dor está sendo grande, mais uma que aprenderei a superar - é assim com todos nós, não é?
Quanto à ele, tem um espaço esplendoroso para correr, galinhas com as quais brincar, humanos que sempre o rodeiam e dão carinho.
Quem sabe, surge uma Clarice e o resgata?
Dilermando da Demétria
foto: Sylvia Beatrix

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